quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

As mentiras que contamos ao doutor


Diante do médico, cortamos o cigarro, bebemos com moderação e seguimos a dieta. Mas bancar o senhor saudável pode ter consequências graves
Por: Ana Luiza Leal | Juliene Moretti

O ator e diretor teatral Fernando Ceylão, 32 anos, não troca seu médico por nenhum outro. Há duas décadas, trata de insônia a pressão alta com o mesmo senhor de cabelos brancos de um consultório no Rio de Janeiro a quem carinhosamente apelidou de “Hannibal Lecter” (o canibal do filme O Silêncio dos Inocentes). A conversa é sempre a mesma: — Ceylão, tem tomado direito os remédios de diabetes e hipertensão?
— Claro.
— Está fazendo refeições de 3 em 3 horas?
— Isso.
— Fez os exames que eu pedi?
— Fiz, mas não me lembrei de trazer os resultados.
Perfeito, se fosse verdade. O diretor se esquece dos comprimidos, faz duas refeições por dia e ignora solenemente todos os pedidos de exame. “Minto para não deixar o doutor triste, preocupado. Ele percebe e me dá umas chamadas. Gostaria de seguir as recomendações à risca, mas é difícil”, afirma Ceylão. Não é de estranhar, portanto, que os encontros com Hannibal Lecter sejam tão inócuos quanto uma pílula de farinha. A insônia e a pressão alta continuam até hoje parceiras fiéis de Ceylão. Identificou-se com a história do diretor? Vamos lá, não há nenhum problema em confessar: você também já ficou aboletado em frente ao senhor de branco passando boa parte do tempo fantasiando um comportamento exemplar. Na hora da inquisição em frente ao médico, ninguém exagera no churrasco de fim de semana, os fumantes compulsivos cortam pela metade o número de cigarros consumidos, a caminhada arrastada de 15 minutos se transforma em exercícios físicos regulares (sim, juro, doutor) e aquelas happy hours com direito a dois pés na jaca viram, milagrosamente, dois inocentes chopinhos com os amigos.
Durante boa parte de sua vida, o ator José de Abreu, 63 anos, fez parte desse clube de mitômanos de consultório. “Era muito difícil eu chegar no médico e falar: ‘Eu venho bebendo desde os 14 anos todos os dias’ ”, afirma. Na fase de boemia mais aguda, entornava até 30 chopes numa noitada com os amigos. “Quando chegava a fatura do cartão de crédito, eu só via bar, bar, bar. E batia aquela tristeza”, diz o ator. Ele só tomou coragem de contar a verdade quando se tornou um sessentão e decidiu que era hora de se preparar para a velhice. “Foi um alívio admitir ao médico os péssimos hábitos e, melhor ainda, mudar a rotina. Hoje, bebo uma tacinha ou outra de vinho uma vez por semana”, diz Abreu (veja outros depoimentos a seguir).
Afinal de contas, por que mentimos compulsivamente aos médicos? Pode ser por vergonha de admitir que agimos como idiotas no dia a dia, medo de ficar internado na mesma hora ou pelo “complexo de super-homem”, que é a forma como os especialistas chamam nossa insana determinação de cuidar de tudo sem fraquejar. “O cara não pode ficar doente porque sua missão é salvar o mundo todos os dias”, afirma o cardiologista Flávio Tarasoutchi, do Instituto do Coração, em São Paulo. “Ele tem compromissos profissionais inadiáveis, contas a pagar, filhos para criar. Além do mais, é um forte, não precisa tomar aquela quantidade de remédios. Em vez dos quatro comprimidos receitados, acha que um só é suficiente para ele.”
Metabolismo raro
Muitas das mentiras não resistem à primeira análise, pois os médicos estão cada vez mais preparados para nosso comportamento “pinoquiano”. Uma pesquisa recente da Clínica de Cleveland, nos Estados Unidos, apontou que três em quatro médicos acreditam que 25% ou mais dos pacientes mintam na consulta. No Brasil, não há estudo parecido. Mas a experiência dos médicos mostra que o fenômeno se repete por aqui. “Eu brinco com os meus pacientes dizendo que eles sofrem de metabolismo inusitado”, afirma o cardiologista Elias Knobel, vice-presidente do hospital Albert Einstein, em São Paulo. “Não comem nem bebem nada, mas estão obesos, coitadinhos.”
O que nós, pacientes, não avaliamos ainda com a devida profundidade são os riscos desse comportamento de mentir no consultório. Esconder do médico que você sai do jogo de futebol society arfando e com dores no peito, amigo, é um comportamento quase suicida. “Esse tipo de cansaço é sintoma de uma doença cardíaca que pode levar ao infarto”, afirma o cardiologista Marco César Almeida, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Para o ortopedista Moisés Cohen, um dos mais conceituados de sua área em São Paulo, o cigarro é o pior inimigo de seu trabalho. “O tabaco não permite a cicatrização completa da fratura, deixando-a mais fraca e suscetível a outras lesões. A maioria dos pacientes não sabe dessa influência e, por isso, acha irrelevante responder que é fumante”, comenta. Nesse caso, o tempo de tratamento também é prejudicado: se você precisava ficar dois meses engessado, a conta pode aumentar para até seis meses.  Isso sem falar que várias doenças têm tratamento mais simples e eficaz quando diagnosticadas precocemente. Tome-se como exemplo o câncer de próstata. Especialistas como o urologista Miguel Srougi, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sabem que muitos de nós preferem enfrentar a forca a se submeter ao temido exame de toque retal. Mas, infelizmente, ainda é a melhor opção que temos para descobrir a existência da doença.
“Explico ao paciente que, de cada seis amigos dele, um vai ter câncer de próstata, um  problema que pode acarretar impotência e incontinência urinária. Aqueles que descobrirem antes vão se curar”, afirma Srougi.  Não se convenceu até agora a mudar o comportamento na frente do médico? Veja, então, a coisa pelo lado prático: você prefere contar a verdade de cara ou ser submetido a dezenas de exames clínicos desagradáveis que o médico certamente irá solicitar? Segundo o urologista Srougi, com a tecnologia atual é possível identificar quase todas as doenças por meio de exames. “Mas não é razoável pedirmos 120 tipos de análise de sangue, 30 tipos de exame de imagem. Quando o paciente age com sinceridade,  economizamos tempo, algo que pode fazer diferença entre a vida e a morte em alguns casos”, diz Srougi. É, meu caro, vamos admitir: os médicos estão cobertos de razão.
FONTE: Revista ALFA 

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